%20n%C3%A3o-toda.png)
Apresentação
Foi a partir da escuta das mulheres que nasceu a psicanálise, e talvez não seja audacioso dizer que as denominadas histéricas fundaram, junto com Freud, essa práxis da fala. Embora seja inegável que a feminilidade carregue na obra freudiana uma série de contradições e marcas do discurso corrente da época, é necessário reconhecer o caráter subversivo e inovador no modo como Freud tratou a sexualidade humana, em grande medida, a desnaturalizando. Acompanhamos, ao longo do seu work in progress, o quão central a questão da feminilidade vai se mostrando para a própria construção da psicanálise, incluindo a direção do tratamento, de tal maneira que Freud chega ao fim do seu ensino com dois enigmas enodados, a saber: a questão do fim de análise e a famosa pergunta “O que quer uma mulher?”.
Atendendo em alguma medida ao chamado freudiano de tornar a pedra no caminho de uma teoria na pedra angular daquela que a substitui, Lacan avança a partir do rochedo de Freud e vai dizer que a sua hipótese da “não-toda” foi o que fez aparecer algo de novo sobre a sexualidade feminina. Assim, o grande leitor do dizer freudiano consegue dar nova amarração ao que parecia um nó cego e desloca a psicanálise da anedota da castração para a lógica da sexuação. Aliás, a escolha pela lógica se alicerça na aposta de que esta portaria a marca do impasse sexual por onde o real se afirma. A invenção lacaniana de uma letra “a” e a fundação de um campo, o do gozo, confirmam essa aposta.
Acompanhamos, do início ao fim da obra de Lacan, uma extensa conversa que ele trava com Aristóteles, apontando os furos na lógica clássica até propor ele mesmo uma “nova lógica” que escapa ao aristotelismo. As modalidades de gozo “todo” e “não-todo” são formalizadas, no Seminário 20, no qual chamou de fórmulas da sexuação, onde se lê algebricamente os aforismos “Não há relação sexual” e “A mulher não existe”, dois grandes vetores da clínica psicanalítica a partir de Lacan. Dessa escrita do real se pode extrair muitos fios para tratar desde as questões dos seres (a)sexuados até o direcionamento clínico de uma análise, seus meios e seus fins. Mais ainda, é possível inclusive dialogar com as questões no campo do social, uma vez que “a realidade é abordada pelos aparelhos de gozo”.
Com apoio da lógica e dos quantificadores, torna-se viável abordar a tensão universal-singular e seus efeitos de pertencimento, diferença e segregação, tanto na relação entre a Escola e seus uns em formação quanto no laço social na pólis entre os cidadãos. Dados os últimos acontecimentos políticos locais e globais, fica evidente a importância de não perder de vista o enfrentamento ao empuxo ao Um que propaga o discurso do “tudo” e do “todos” para escamotear o benefício de alguns. No avesso desse discurso, a ética da psicanálise tem como norte a mulher (la pastoute), nome do conjunto aberto que só permite que se conte uma a uma.
Nesse trilho, muitos caminhos se abrem para perguntas e debates que nos levam a revisitar o que foi elaborado por Freud e Lacan e a fazer avançar o nosso campo conforme os desafios dos novos tempos se apresentam. Posto isso, o Fórum Salvador lança seu programa 2023 que acontecerá não-todo em modalidade híbrida.
O Espaço Escola se dedicará à temática “A Escola e a lógica (da) não-toda: implicações na formação do Analista” de forma a enlaçar as questões de Escola ao nosso tema de 2023, desde a abertura, quando receberemos a colega Elynes Barros Lima, recém nomeada Analista da Escola; o espaço letraC proporá como tema “Cartel como laço social da Escola”, confirmando a nossa posição sobre a importância deste dispositivo para a formação dos analistas; o Seminário das Formações Clínicas contará com apresentações de membros do FCL-SSA e de convidados de outros fóruns e espaços para trabalhar o tema do ano “A lógica (da) não-toda”; a Ciranda – Rede de Pesquisa Psicanálise e Criança seguirá se debruçando sobre as “Consequências clínicas da sexualidade feminina para a psicanálise com crianças”; a Rede Clínica debaterá a direção do tratamento na clínica, ampliando o espaço de transmissão e de formação continuada no FCL-SSA; nos Laços Epistêmicos, receberemos colegas de outros Fóruns do Brasil e do mundo para tratar das temáticas afins ao Espaço Escola e ao Seminário das Formações Clínicas. Além das citadas, daremos seguimento às atividades Seminário de Leitura dos Escritos e Outros Escritos, Oficina de Leitura do Seminário 10, Curso “O sintoma e a lógica (da) não-toda”, PCINE – Psicanálise e Cinema e contaremos com uma nova atividade intitulada A Biblioteca de Lacan que pretenderá explorar e debater obras de alguns dos interlocutores de Lacan.
Ilustra a capa do nosso programa 2023 uma fotografia da obra “Invisível Profundo”, de autoria da artista baiana Ju Fonseca. A peça faz parte da exposição “Nó aberto”, composta por um trabalho manual delicado e potente com fios de seda, cordas e cerâmica. A tessitura de Ju Fonseca nos leva ao comentário freudiano sobre a grandiosa contribuição das mulheres para a civilização humana: a técnica de “trançar e tecer [...] fazer os fios unirem-se uns aos outros” . Os fios se enlaçam formando nós, não sem os furos, e, nas palavras da artista, “o nó aberto é a metáfora para novas possibilidades, é um paradoxo em si”. O paradoxo, figura emblemática do equívoco, é caro à psicanálise desde que Freud anuncia que o inconsciente não conhece a contradição. Foi porque Lacan pôde questionar a proposição de Aristóteles de que “não é possível a uma mesma coisa ao mesmo tempo ser e não ser” que adveio le pastout/la pastoute, uma nova lógica: A lógica (da) não-toda.
Pollyana Almeida
Coordenadora do Seminário das Formações Clínicas
____________________
[1] FREUD, Sigmund. Conferência XXXII: Ansiedade e vida instintual. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud [1932-1933]. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XXII, p. 106.
[2] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 64.
[3] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante [1971]. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 133.
[4] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 19: … ou pior [1971-1972]. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 39.
[5] Idem, p. 20.
[6] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 61.
[7] Clique para acessar o Instagram e o site da artista
[8] FREUD, Sigmund. Conferência XXXIII: Feminilidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud [1932-1933]. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XXII, p. 131.
[9] JU FONSECA em entrevista à Gabriela Cruz do site Alô Alô Bahia, 2022. Clique aqui para acessá-la.
Atividades abertas ao público
Para participar do Espaço Escola, espaço letra C, Seminário das Formações Clínicas e Psicanálise e Cinema – PCINE, que ocorrem nas quartas-feiras às 20h, conforme as datas disponibilizadas no programa acima, acesse a Plataforma Zoom através dos seguintes IDs*:
Espaço Escola
ID da Reunião: 898 6203 9246
Clique aqui para entrar na reunião
espaço letra C
ID da Reunião: 837 8799 1362
Clique aqui para entrar na reunião
Seminário das Formações Clínicas
ID da Reunião:850 3471 9346
Clique aqui para entrar na reunião
PCINE - Psicanálise e Cinema
ID da Reunião: 865 2433 4058
Clique aqui para entrar na reunião
Para participar dos Laços Epistêmicos, que ocorrem aos sábados às 9h, conforme as datas disponibilizadas no programa acima, acesse a Plataforma Zoom através do seguinte ID*:
Laços Epistêmicos
ID da reunião: 851 1730 6414
Clique aqui para entrar na reunião
As referidas atividades são gratuitas e prescindem de inscrição.
* Não é necessário o uso de senha para entrar nas reuniões.
Errata: O XXIII Encontro Nacional da EPFCL-Brasil ocorrerá de 16 a 19 de novembro de 2023 em Belém-PA.