
Apresentação
“Apresento a vocês os melhores votos para o ano novo, como se costuma dizer.”1 Uma contingência preci(o)sa contarmos com essas palavras para dar partida ao nosso Programa! Com Lacan, o começo é da ordem de uma demarcação significante, em ato. Oportunidade para relançarmos os dados numa aposta na renovação de um ciclo.
Em 2024, o FCL-SSA se dedicou ao estudo do tempo, e, neste ano, o tema orientador que escolhemos ainda carrega as ressonâncias desse percurso. O ato mantém uma relação estrutural com a temporalidade, como nos transmite o apólogo dos três prisioneiros. Tempos lógicos, desde o instante de ver ao ato que irrompe “e de um só golpe conclui o tempo para compreender”:2 “ato de concluir”.3
Novo ano, tempo de Ainda estou aqui, momento oportuno para também falarmos sobre um passado que só passará se sobre ele consentirmos com outras voltas e e-laboração. Imperialismos e escravidão, ditaduras, emergências climáticas, conflitos por terra, crises migratórias, acirramento das violências contra as populações negra e indígena... Enfim, tão repetida como crucial a advertência lacaniana para que os psicanalistas estejam à altura das conjunturas de sua época, ainda que se mantendo em posição de extimidade, de onde se têm as condições para que o ato psicanalítico não seja atuação!
Afirmamos que “A Escola e os Fóruns devem ser um lugar para se elaborar o discurso do analista cujo saber sustenta o ato analítico não só nas análises, mas também na relação da Escola com a pólis”.4
No ano 1967, enquanto Lacan ministrava seus seminários “A lógica do fantasma” e, em seguida, “O ato psicanalítico”, a França já fervilhava com o movimento estudantil que deflagraria o Maio de 1968. Questões de relevância social e política foram levantadas nesse período, e Lacan as considera em seu percurso, sendo possível notá-las na intensa produção do último trimestre de 1967, incluindo uma proposição orientadora ao trabalho entre intensão e extensão, para o qual são convocados os psicanalistas da Escola.
É nesse mesmo ano, em seu seminário sobre a lógica do fantasma, que ele introduz o termo “ato”, ocupando-se de estabelecer distinções e precisões sobre suas três modalidades para a psicanálise: acting out, passagem ao ato e ato psicanalítico. Esse último foi desenvolvido significativamente em seguida, em seu seminário “O ato psicanalítico”.
Para falarmos de ato, é importante trazermos à tona aquilo que Freud nos apresenta em “A psicopatologia da vida cotidiana”5 e em “As conferências introdutórias”: Fehlleistungen, atos falhos, funções falhas, lapsos — formações do inconsciente polissêmico que revelam a divisão subjetiva.
“Ato, o que isso quer dizer? (...) Como definir o que é um ato?”6 Um ato marca um antes e um depois, dado que, diferentemente de uma ação motora qualquer, precisa, necessariamente, introduzir uma descontinuidade, um corte. Lacan nos apresenta como exemplo paradigmático de um ato um fragmento histórico no qual Júlio César atravessa o Rubicão.
Para atravessar esse pequeno rio que só percorre 29 quilômetros antes de desaguar no Adriático, foi necessário precisamente que César se libertasse do valor simbólico desse limite que nenhum exército deveria atravessar para penetrar na província de Roma. César liberta-se do passado escrito na lei simbólica, ele não teme o futuro porque é sua hora. (...) Um ato requer uma qualidade de presença que ultrapassa a vontade e a consciência.7
Também foi um ato lacaniano introduzir o tempo lógico para as sessões, rompendo com o tempo cronológico instituído como padrão até então. Esse ato teve consequência dupla: tanto nas análises de seus analisandos quanto na comunidade analítica. Não se passa diferente a cada vez que um ato psicanalítico se inaugura; há consequências para o analisando que faz sua passagem a analista e para a comunidade psicanalítica pelo que se transmite e se recolhe por meio de cada passe.
Lacan transmitia a psicanálise ao fazê-la ressoar. “Estou falando com as paredes”, disse, ao ministrar aulas na Capela de Sainte-Anne, fazendo um costumeiro jogo de palavras que leva ao equívoco. Critica o fato de que, em vez de o colocarem em um auditório, reservam -lhe uma capela para falar aos residentes do Hospital Sainte-Anne, restando escondida a ideia de que “falar às paredes implica fazer ressoar uma voz, exatamente um dos objetivos da arquitetura das igrejas e das capelas, onde a disposição das paredes é planejada para produzir ressonância”.8
Lacan abre uma trilha a partir de Freud, desde a interpretação, que visava à decifração, ao tempo da réson, neologismo que fisga do poeta Francis Ponge, e bem desloca a ênfase do sentido ao som, sem perder algo de significante, que o ato carrega junto com a ação. Por homofonia, equivoca razão (raison) e ressonância (résonance), subvertendo o cogito cartesiano que persegue a verdade pela razão. O ato psicanalítico faz ressoar um dizer.
Para ilustrar nosso Programa de 2025, contamos com a bela imagem produzida pelo designer gráfico Andre Oki. Ele bem soube escutar a ideia do ato que lança o seixo à poça com pinceladas que produzem ondas, como as ondinhas que nos trarão o colega Luis Izcovich (EPFCL-França), que topou embarcar conosco atravessando o oceano para tratar do tema que também o tem ocupado.
Alea jacta est!
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1 Lacan, J. (1967-1968). Seminário, livro 15: o ato psicanalítico (p. 77). Lição de 10 de janeiro de 1968. Inédito (versão em.pdf).
2 Lacan, J. (1998). Escritos (p. 206). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Trabalho original publicado em 1966)7 idem, p.208.
3 Quinet, A. (2021). A política do psicanalista: do divã para a pólis (p. 64). Rio de Janeiro: Atos e Divãs Edições.
4 Freud, S. (1976). A psicopatologia da vida cotidiana. In S. Freud. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. VI). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1901)
5 Freud, S. (2014). Os atos falhos. In S. Freud. Obras completas (Vol. 3). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1916)
6 Lacan, J. (2024). Seminário, livro 14: a lógica do fantasma. Lição de 15 de fevereiro de 1967. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1966-1967)
7 idem, p.208.
8 Nominé, B. (2024). O presente do presente: ensaio psicanalítico sobre o tempo (p. 120). São Paulo: Blucher.
9 Furtado, L. A. R. (2021). Réson: ruído, ressonância e razão significante na clínica psicanalítica. Psicol. Clin. (online), 33(1), 161-183. Recuperado de https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652021000100009
Atividades abertas ao público
Para participar do Espaço Escola, espaço letra C, Seminário das Formações Clínicas e Psicanálise e Cinema – PCINE, que ocorrem nas quartas-feiras às 20h, conforme as datas disponibilizadas no programa acima, acesse a Plataforma Zoom através dos seguintes IDs*:
Espaço Escola
ID da Reunião: 898 6203 9246
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espaço letra C
ID da Reunião: 837 8799 1362
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Seminário das Formações Clínicas
ID da Reunião:850 3471 9346
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PCINE - Psicanálise e Cinema
ID da Reunião: 865 2433 4058
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As referidas atividades são gratuitas e prescindem de inscrição.
* Não é necessário o uso de senha para entrar nas reuniões.