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Apresentação

O tempo habitado na agulha de cada instante[1], como escreve a caneta do poeta, alinhava pelo fio do desejo, passado, presente e futuro[2], como ensina o primeiro psicanalista. De que tempo se trata na experiência de uma psicanálise? Que dizer do manejo possível diante das figuras temporais que abundam nas falas sob transferência? Os tempos da vida, os fins, começos e intervalos. O tempo que corre, a urgência, a angústia, o tempo paralisante, o tédio e a procrastinação. A pressa, a ansiedade, a antecipação e a precipitação. Fora do tempo, contratempo; antes do tempo, o tempo que resta, o momento oportuno, a perda de tempo…

 

Na fineza de sua escuta clínica, Freud percebeu que o sonho, o chiste, o lapso e o sintoma dão testemunha da (a)temporalidade da Outra cena. “Os processos do sistema Ics são atemporais, isto é, não são ordenados temporalmente, não são alterados pela passagem do tempo, não têm relação nenhuma com o tempo”[3]. O tempo cronológico tomado como uma linha reta, que levaria à ideia de causalidade vetorizada do antes ao depois, torna-se insuficiente e mesmo falha. Nesse sentido, a teoria do trauma é emblemática da “estranha temporalidade”[4] do inconsciente freudiano. Ainda no início de sua obra, Freud chega a forjar o termo nachträglich (a posteriori) para delinear algo dessa complexa trama entre passado, presente e futuro, indicando, como aponta Lacan, “uma estrutura temporal de ordem mais elevada”[5] no modo como se implicam trauma e sintoma.

 

Apesar de o tempo ser um tema que atravessa de alguma forma toda a obra freudiana, Freud chega a lamentar que não tenha podido se dedicar algo mais a isso, como aponta Dominique Fingermann[6] em seu texto “O ‘tempo’ de uma análise”, apresentado em 2008 no V Encontro Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, cujo tema era “Os tempos do sujeito do inconsciente: a psicanálise no seu tempo e o tempo da psicanálise”.

 

Muitíssimas vezes, tive a impressão de que temos feito muito pouco uso teórico desse fato, estabelecido além de qualquer dúvida, da inalterabilidade do recalcado com o passar do tempo. Isto parece oferecer um acesso às mais profundas descobertas. E, infelizmente, eu próprio não fiz qualquer progresso nessa parte[7].

 

Como em outras frentes de trabalho, Lacan pôde avançar um pouco mais sobre o tema do tempo tanto na direção do tratamento quanto na formação dos analistas. Destacamos aqui a noção de tempo lógico modulado por ele[8] em instante de ver, tempo para compreender e momento de concluir. O texto de 1945 abre caminhos para pensarmos a teoria do sujeito e sua relação com o Outro, de maneira que essa outra cadência temporal extrapola o calendário e o cronômetro, fomentando questões sobre o manejo das análises, a duração das sessões e seus fins. A práxis psicanalítica, depois de Lacan, torna-se mais afinada à ética e à política próprias do inconsciente, e o manuseio com o tempo não fica de fora dessa empreitada. O corte que pode ter efeito de interpretação après-coup[9], o instante do ato, a dissolução no cartel, o momento da passagem de analisante a analista, o futuro antecipado na constituição do sujeito, a hiância entre os significantes, sincronia e diacronia, a pulsação inconsciente, e tantas outras...

 

O tempo – no plural – que se experimenta na clínica e na formação se encontra em relação ao que se passa no momento histórico no qual cada sujeito se encontra apalavrado. E, a despeito de negar uma posição alarmista[10] perante as mudanças ocorridas no laço social em seu tempo, Lacan recomendou que os analistas não estivessem ingênuos ao que se passa para além dos seus consultórios: “que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”[11].

 

Enquanto escutava uma a uma as pessoas que 0 procuravam, Sigmund Freud (que viveu entre 1856 e 1939) não se furtou a enfrentar os temas que atravessaram sua geração. Falou da moral sexual na cultura, da guerra, da ascensão da religião e dos grupos totalitários. Por sua vez, Jacques Lacan (1901-1981) produziu a partir das questões colocadas pelos movimentos sociais, criou a teoria dos discursos que dá embasamento para pensar os efeitos do capitalismo nas subjetividades e nos laços, falou da televisão, dos gadgets e previu a ascensão da segregação e dos racismos. Esses posicionamentos são legados que deixam aos psicanalistas contemporâneos a tarefa de pensar e produzir sobre o tempo que vive quem analisa hoje. Quais os atravessamentos históricos impactam a clínica em 2024?

 

O tempo na psicanálise e o tempo da psicanálise se encontram em relação. O que muda com o tempo indica a descontinuidade promovida pelos acontecimentos. Assim, o tempo de kairós faz corte na estrutura contínua de chronos e instaura-se um antes e depois a cada fato novo ao longo da história (coletiva e singular). Por sua vez, aquilo que pode mudar com o tempo se cruza ao que resta sempre atual da estrutura na moterialidade[12] têxtil do inconsciente. Nesse trançado, localizamos o tema de estudo do FCL-SSA neste ano: Tempo e Psicanálise.

 

No tecer dos laços de trabalho, contaremos com a participação presencial do colega Bernard Nominé (FCL França) em nossa Jornada em novembro de 2024. Nominé é psicanalista, AME desta Escola e um grande interessado no tema do tempo, tendo ampliado as elaborações a esse respeito em nossa comunidade.

 

Do “trançar e tecer” em nó aberto de Ju Fonseca, artista baiana com quem contamos para o Programa em 2023, enlaçamos o fio do desejo das pinturas de lã da também baiana Madalena Santos Reinbolt (Vitória da Conquista, BA, 1919 – Rio de Janeiro, RJ, 1977). Com muita satisfação, ilustra o Programa 2024 a obra “sem título” (1969-1977) cedida pelo Masp, local que recebeu uma exposição individual da artista entre 2022 e 2023. A obra escolhida é uma tapeçaria multicolorida e plural em sentidos. São “histórias saídas dos miolos” da artista da “cabeça cheia de planetas”[13], para usar suas palavras. Os fios de Madalena se entrelaçam com o nosso tema de trabalho, na medida em que, no dizer de Lacan, no tecido (têxtil/texto) há algo do valor do tempo[14].

Pollyana Almeida

Coordenadora do Seminário das Formações Clínicas


 

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[1] MELO NETO, João Cabral de. Habitar o tempo. In: MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra e outros poemas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008 [1962-1965]. p. 267.

[2] FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneios. In: FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996 [1907-1908]. v. IX.

[3] FREUD, Sigmund. O inconsciente. In: FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996 [1915]. v. XIV.

[4] LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988 [1964]. p. 30.

[5] LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998 [1966]. p. 853.

[6] FINGERMANN, Dominique. O “tempo” de uma análise. Revista de Psicanálise Stylus, n. 18, p. 33-40, 2009. Disponível em: https://doi.org/10.31683/stylus.vi18.871. Acesso em: 14 fev. 2024.

[7] FREUD, Sigmund. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência XXIX - revisão da teoria dos sonhos. In: FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996 [1932-1933]. p. 40.

[8] LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998 [1966]. p. 204.

[9] Tradução que Lacan faz para o francês do termo nachträglich de Freud. Trata-se do só-depois ou a posteriori.

[10] LACAN, Jacques. Entrevista com Emilia Granzotto para o jornal Panorama, em Roma, 21 nov. 1974. Inédito. 

[11] LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998 [1966]. p. 322.

[12] Jogo de palavras que Lacan faz em francês entre mot (palavra) e materialidade. 

[13] PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André (org.). Madalena Santos Reinbolt: uma cabeça cheia de planetas. São Paulo: Masp, 2022. p. 18.

[14] LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988 [1959-1960]. p. 277-278.

Atividades abertas ao público

Para participar do Espaço Escola, espaço letra C, Seminário das Formações Clínicas e Psicanálise e Cinema – PCINE, que ocorrem nas quartas-feiras às 20h, conforme as datas disponibilizadas no programa acima, acesse a Plataforma Zoom através dos seguintes IDs*:

Espaço Escola

ID da Reunião: 898 6203 9246

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espaço letra C

ID da Reunião: 837 8799 1362
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Seminário das Formações Clínicas

ID da Reunião:850 3471 9346

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PCINE - Psicanálise e Cinema

ID da Reunião: 865 2433 4058

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Para participar dos Laços Epistêmicos, que ocorrem aos sábados às 9h, conforme as datas disponibilizadas no programa acima, acesse a Plataforma Zoom através do seguinte ID*:

 

Laços Epistêmicos

ID da reunião: 851 1730 6414 

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As referidas atividades são gratuitas e prescindem de inscrição.

* Não é necessário o uso de senha para entrar nas reuniões.

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